Ela tinha sete anos. Falava alto demais, era desajeitada e sozinha. Lia no recreio (sempre Bruxa Onilda, sabia de cor). Usava Melissa. Na época todo mundo usava Melissa e consequentemente ficava todo mundo com o pé preto; ela tinha vergonha do pé preto. Tinha vergonha de um monte de coisas; entendia quase nada...
Um dia a "tia" chegou na sala de aula com uma caixa nas mãos. Não ia ter ditado, nem teste de fatos, nem desenho pra colorir e colar no envelope de provas; ia ser um dia diferente. A tia se chamava Teresa e equivalia, pra ela e pra toda a garotada, à Professora Helena.
A tia Teresa era uma tia típica de primeira série: chamava os pais de "pai" e as mães de "mãe", conversava com quem chorava porque não tinha mais a esteira da soneca, e tinha uma paciência que só. A tia Teresa estava lá, colocando a caixa em cima da mesa, olhando a turma de rabo de olho, atenta aos rostinhos de interrogação que via nos pequenos. A caixa era uma caixa azul, parecida com uma caixa de sapato, tampada.
Pegando um giz, fazendo-se de desentendida, Teresa ia colocando a data no quadro negro, como fazia todos os dias. Deu boa tarde, ajustou a setinha no relóginho do tempo para "nublado" e ia continuando o ritual diário até que a notou com a mãozinha levantada. Deixou-a falar.
- Tia, o que tem dentro da caixa? - ela perguntou.
A tia olhou pra caixa azul, despretenciosamente.
- O quê? Aquela caixa?
- Uhum. O que tem dentro dela?
E com um tom de "suspense-super-legal", a professora respondeu:
- Ali dentro tem a coisa mais importante do mundo!
Pronto! A garotada empolgada começou a tentar adivinhar e perguntar e rir e falar e pedir pra ver... Nossa! Uma confusão. E então a tia fez um acordo: se todo mundo ficasse quietinho e prometesse não contar pra nenhum colega o que visse dentro da caixa, ela deixaria um por um ir até a mesa e olhar - com muito cuidado! - o que era de tão especial que cabia ali dentro.
Ela dizia: "Não existe nada mais importante e especial do que o que vocês vão ver na caixa. O que tem ali dentro pode mudar o mundo!"
E uma por uma as crianças foram em direção à caixa azul. Elas abriam cuidadosamente o cantinho da tampa e cada uma fazia uma expressão de surpresa maior que a outra quando viam o que havia dentro. Voltavam quietinhas pros seus lugares, algumas com a mãozinha na boca tentando disfarçar uma risada. E a tia Teresa observava de longe o semblante de cada uma delas ao abrir a caixa.
Veio sua vez. Ela ficou parada, olhando praquela caixa de papelão, roendo as pequenas unhas num misto de medo e excitação. Não sabia se queria abrir a caixa. Podia ser qualquer coisa ali dentro! E uma coisa tão importante jamais caberia numa caixa de sapatos. As outras crianças da fila a mandavam andar logo mas ela não saía do lugar. Tia Teresa veio, abaixou-se ao seu lado e disse, delicadamente:
- Não precisa ter medo, Anna. Vem ver.
E levantou a tampa da caixa.
A Anna de sete anos deu então dois passos pra frente e inclinou a cabeça pra olhar lá dentro.
(...)
Não sei como pude ter esquecido dessa história em algum momento da minha vida.
Não sei onde voltei a ser aquela criança insegura, que roía unhas e não acreditava em si mesma.
Eu achava que jamais ia sentir orgulho de mim, ou dar orgulho à alguém. Mas ontem, quando li meu nome lá, me lembrei imediatamente do meu rostinho gordo refletido num espelho colado no fundo de uma caixa azul.
Eu senti orgulho. E entendi.
Eu confiei em mim de novo. Parece ridículo, eu sei. Mas é uma vitória. Uma que eu esperei durante muito tempo. Uma que trouxe à tona uma das lembranças mais bonitas da minha infância. Uma vitória que me fez ter sete anos de novo e me sentir - realmente - importante, especial, e principalmente
capaz.